As cartas de amor da cantora Édith Piaf

Cartas de amor da cantora Edith Piaf

Aqui onde escrevo este texto, na rua Yvone Le Tac, Édith Piaf (1915 – 1963) estrelou Montmartre-sur-Seine, filme de 1941 para o qual escreveu quatro canções: J’ai dansé avec l’amourL’Homme des barsTu es partout e Un coin tout bleu. Todas sobre amor.

Estima-se que Piaf tenha vivido pelo menos 14 romances ao longo da vida, e eles foram decisivos para a construção de sua obra, de forte teor emocional. Embora tenha sido alfabetizada tardiamente — como uma típica representante das classes populares da primeira metade do século passado –, conseguia expressar com habilidade as alegrias e tristezas de cada um desses amores em suas letras.

Mais do que as letras de música, as cartas que Piaf escrevia para amigos e amantes desvelam o quanto amou e sofreu – possivelmente em intensidade e frequência parecidas, com ligeira vantagem para a segunda opção. “Piaf compunha bem quando estava amando e quando estava no final de um amor”, definia o cantor Yves Montand, com quem ela namorou entre 1944 e 1946.

De todas essas relações, a que guardou mais documentação da intensidade com que Piaf se envolvia em seus romances foi a que viveu com Marcel Cerdan, durante apenas um ano, entre 1948 e 1949, após se conhecerem em Nova York. Ambos de origem humilde, tendo atingido o estrelato – ela cantora, ele um campeão de box argelino –, Piaf e Cerdan faziam um casal ao estilo Garrincha e Elza Soares.

Marcel Cerdan e Étih Piaf, reprodução do documentário “Édith Piaf Amoreuse”.

Em uma carta de 27 de maio de 1949, ela escreve a Cerdan contando como a mídia francesa a considerava morta depois das doenças que enfrentou e como precisava provar dia após dia que estava em forma. Depois de contar todos esses episódios com a banalidade de quem responde a “como foi seu dia?”, ela então se dirige diretamente a ele, em um movimento literário quase brusco:

Enfim, o principal é que minha voz está boa, mas tem uma coisa que conta ainda mais para mim, que é o teu amor. Isso importa mais do que todo o mundo, chéri. Essa noite não conseguia dormir de tanto que você estava presente na minha memória, foi uma sensação tão forte que eu só precisei estender a mão para te sentir do meu lado. Meu amor, você não poderá jamais imaginar com que força eu te amo.

Dois meses depois, em 22 de julho, em uma carta ainda mais intensa, é possível identificar o principal entrave ao amor dos dois: ele tinha uma família.

Meu adorado

Tenho tantas coisas pra te dizer, mas em seguida tudo se mistura. E me dou conta, a cada vez que termino uma carta, que eu ainda tinha mil coisas para escrever e que, de novo, era tarde demais. A única frase que não esqueço é que eu te amo cada vez mais e que estou completamente louca por ti. É verdade, meu amado, eu me acostumo cada vez menos com as nossas separações e meu coração se rasga um pouco mais a cada vez. Eu te amo tão profundamente, tão forte em mim, estou impregnada de ti e só penso em uma coisa: te fazer feliz. Eu seria capaz de tudo pela tua felicidade. (…) Eu não quero jamais ser um entrave ao teu coração. Quando percebo, meu amor, o lugar que os teus três pequenos ocupam no teu coração, tenho vontade de ir para tão longe que talvez um dia você me agradeça por ter partido. (…) Deus é testemunha de que, nesta história, eu não peço nada e estou disposta a sacrificar tudo. Mas até quando poderemos viver assim? (…) Talvez na América, nós poderemos enfim ser felizes. Chéri, eu te amo tanto, você não sabe a que ponto, eu faria tudo no mundo por ti. Me aperte forte contra seu coração, me impeça de respirar e saiba que nada no mundo importa para mim além de ti, eu te juro sob a minha voz, minha vida, meus olhos.

Os dois se encontram em Nova York, dois meses depois, em setembro, prontos para passar três meses juntos. Ela se apresenta na casa de shows Versailles, ele se prepara para lutar contra Jake La Motta. No Versailles, ela canta pela primeira vez Hymne à L’Amour, escrita para ele, com versos terrivelmente premonitórios:

Se um dia a vida te arrancar de mim

Se você morrer e estiver longe de mim

Pouco importa se você não me ama

Porque eu morrerei também

Teremos então a eternidade

No azul de toda imensidão

Mas o adversário americano de Cerdan se machuca, e o combate é cancelado. Ele decide então retornar a Casablanca, onde vivia sua família, em 2 de outubro, deixando Piaf em Nova York. No dia seguinte, ela escreve ao amigo Jacques Bourgeat, com quem trocou longa correspondência durante anos:

Aqui é uma menina triste que te escreve, sem muita coragem. Você entende, Jacquot, estou terrivelmente decepcionada, eu achava que Marcel me amava acima de tudo, mas percebi que sou apenas sua amante. É tudo o que represento para ele. Ele poderia ter ficado aqui três meses sem ter nenhum problema em casa, mas a vontade de voltar foi mais forte. (…) Achei que ele sofria por mim, mas no dia de ir embora, ele cantava no chuveiro. Nunca mais teremos a chance de passar três meses juntos, ele só voltará quando tiver outra luta. Eu fico sempre por último. Concluo que Marcel precisa e é muito feliz perto dos seus e eu não tenho o direito de destruir isso, então vou desaparecer aos poucos da vida dele.

A carta é apenas um desabafo, Piaf jamais levaria a cabo o plano de esquecer Cerdan ou desaparecer de sua vida. O destino acabaria se ocupando disso. No noite de 27 de outubro, ele retornava aos Estados Unidos para finalmente enfrentar Jake LaMotta, quando o avião da AirFrance em que viajava ao lado de outros 47 passageiros bate contra um monte da Ilha de São Miguel, nos Açores. Não há sobreviventes. Estava encerrada a carreira de 113 vitórias — 61 por nocaute — e apenas quatro derrotas. E também o romance com Édith Piaf que, na mesma noite, decide, mesmo assim, subir ao palco do Versailles, em Nova York. “Esta noite cantarei para Marcel Cerdan”, anuncia no microfone. Durante a quinta canção — alguns dizem que era Hymne à l’Amour — ela desmaia em pleno palco. Acordaria apenas três dias depois.

Em 31 de outubro, escreve ao amigo em Paris:

Meu Jacquot, eu deveria ser a mais feliz e sou a mais infeliz! Só penso em uma coisa: encontrar Marcel. Por que viver? (…) Não tenho mais nenhum objetivo na vida. Cantar? É para ele que eu cantava, meu repertório sentia amor, cada vez mais cada canção me lembra algum gesto dele, uma palavra dele, tudo me lembra ele, foi realmente a primeira vez na vida em que fui feliz, eu vivia apenas para ele, o carro, os vestidos de primavera, era tudo para ele. Você acha realmente humano me pedir para continuar vivendo? Reze, Jacquot, para que eu morra, para que eu não sofra mais. Minha dor é inacreditável. Um beijo. Édith.

Uma semana depois, Piaf se fecha no banheiro e corta os cabelos bem curtos, esculpindo a imagem que teria até sua morte, a segunda Édith Piaf que nasceria a partir dali e que se tornaria famosa no mundo todo.

Ainda viveria romances com Eddie Constantine — autor da versão em inglês de La Vie en Rose — e com outro atleta, o ciclista Louis Toto Gérardin. Com Gérardin, trocaria nada menos que 52 cartas apaixonadas, que foram leiloadas em 2009 e publicadas em livro, e bastante parecidas com as que escreveu para Cerdan. “Te amo com toda a minha alma, meu coração e minha pele, não haverá ninguém depois de você, quero que seja o único!”, escreveu, em uma carta de 1951, assinando com 16 vezes a letra “m”:

“Je t’aimmmmmmmmmmmmmmmme” .

Tanto Constantine quanto Gérardin abandonariam Piaf para ficar com suas respectivas esposas — ser “a outra” era sua sina. Até que ela decide se casar com o compositor Jacques Pills, em Nova York, não sem antes tripudiar sobre o ex-amante-ciclista, em uma última carta de 1952: “Eu te avisei mil vezes que você me perderia, mas você nunca reagiu, então aconteceu o que era para acontecer.” Piaf ainda casaria uma segunda vez, aos 46 anos, com o cantor grego Théo Sarapo, duas décadas mais novo, em uma festa que parou o 16ème arrondissement de Paris. Ficaria com ele até morrer.

Édith Piaf e Théo Sarapo, reprodução do documentário “Édith Piaf Amoreuse”.

LEIA TAMBÉM:

  • Nosso artigo sobre Aux Follies, bar que era frequentado por Piaf.
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